Neste manifesto escrito por Glauber Rocha em 1965,fundamenta-se as bases do Cinema Novo Brasileiro.
Dispensando a introdução informativa que se
transformou na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura civilizada em
termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta
suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo
de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira
miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do
latino.
Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no
Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras
elaboradas da verdade (os exotismos formais que
vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma
série de equívocos que não terminam nos limites
da Arte mas contaminam o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de
criação artística do mundo subsesenvolvido só o
interessam na medida que satisfazem sua nostalgia
do primitivismo, e este primitivismo se apresenta
híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo
civilizado, mal compreendidas porque impostas
pelo condicinamento colonialista.
A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a
forma mais aprimorada do colonizador: e além dos
colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que
também sobre nós armam futuros botes. O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de
uma nova dependência.Este condicionamento econômico e político nos
levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que,
às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria.
A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em
exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da
universalização: artistas que não despertaram do
ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas
de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos;
livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes
(que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)… O mundo oficial encarregado das
artes gerou exposições carnavalescas em vários
festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do
mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e
marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades
universitárias: as famosas revistas literárias, os
concursos, os títulos.
A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia
jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso
de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura
de uma sistematização para a arte popular. Mas o
engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio
não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço de superar a impotência: e no resultado desta operação a fórceps, nós
nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores
do colonizador: e se ele nos compreende, então, não
é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma
vez o paternalismo é o método de compreensão
para uma linguagem de lágrimas ou de sofrimento.
A fome latina, por isto, não é somente um sintoma
alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí
reside a trágica originalidade do Cinema Novo
diante do cinema mundial: nossa originalidade é a
nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome,
sendo sentida, não é compreendida.
De Aruanda a Vidas Secas , o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer,
personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas,
feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão
condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos
interesses antinacionais pelos produtores e pelo
público – este último não suportando as imagens da
própria miséria. Este miserabilismo do Cinema
Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda:
filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em
carros de luxo: filmes alegres, cômicos, rápidos,
sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome,
como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os
cineastas pudessem esconder a miséria moral de
uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os
próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria
incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de
paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de
filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de
importância internacional foi justamente seu alto
nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60;
e, se antes era escrito como denúncia social, hoje
passou a ser discutido como problema político. Os
próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico
(Porta das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba),
ao demagógico (Cinco vezes Favela), ao experimental (Sol Sobre a Lama), ao documental (Garrincha,
Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três
anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai
caracterizar o período Jânio-Jango: o período das
grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril.
E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é
um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro
é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem
vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de
onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos
estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e
desesperados onde nem sempre a razão falou mais
alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas
próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome
é a violência. A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem
sido uma das causadoras de mistificação política e
de ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais
da fome pedem dinheiro aos países colonialistas
com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar
ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia
pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu:
impôs-se a violência de suas imagens e sons em
vinte e dois festivais internacionais.
Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um
faminto é a violência, e a violência de um faminto
não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é
primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto
das Caixas éprimitiva?
Do Cinema Novo: uma estética da violência antes
de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua
possibilidade única, a violência, o colonizador pode
compreender, pelo horror, a força da cultura que ele
explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado
é um escravo: foi preciso um primeiro policial
morto para o francês perceber um argelino.
De uma moral: essa violência, contudo, não está
incorporada ao ódio, como também não diríamos
que está ligada ao velho humanismo colonizador. O
amor que esta violência encerra é tão brutal quanto
a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de
ação e transformação.
O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as
mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em
busca de uma saída possível para o amor, dada a
impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido, a
Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um
amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos
tempos para os filhos, Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a
moça do padre precisa romper a batina para ganhar
um novo homem; a mulher de O Desafio rompe
com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isso tentará reduzir a vida do marido a um sistema
medíocre.
Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que
nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes
pela fome.
O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo
econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade
privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta
disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões
hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um
germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um
germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta,
de qualquer idade ou de qualquer procedência,
pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço
das causas importantes de seu tempo, aí haverá um
germe do Cinema Novo. A definição é esta e por
esta definição o Cinema Novo se marginaliza da
indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração.
A integração econômica e industrial do Cinema
Novo depende da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si
próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar
um homem ou uma casa, no detalhe que observar,
na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de
filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a
consciência de sua própria existência.
Não temos por isto maiores pontos de contato com
o cinema mundial. O Cinema Novo é um projeto
que se realiza na política da fome, e sofre, por isto
mesmo, todas as fraquezas conseqüentes da sua
existência.

Nenhum comentário:
Postar um comentário