Nós - Variação do Manifesto

 




Neste manifesto escrito por Dziga Vertov em 1922, defende-se uma distinção entre as produções estadunidenses e alemãs do periodo em relação ao cinema russo do período.








Nós nos denominamos KINOKS para nos diferenciar dos "cineastas", esse bando de ambulantes andrajosos que impingem com vantagem as suas velharias.

Não há, a nosso ver, nenhuma relação entre a hipocrisia e a concupiscência dos mercadores e o verdadeiro "kinokismo".

O cine-drama psicológico russo-alemão, agravado pelas visões e recordações da infância, afigura-se aos nossos olhos como uma inépcia.

Aos filmes de aventura americanos, esses filmes cheios de dinamismo espetacular, com mise en scène à Pinkerton, o kinok diz obrigado pela velocidade das imagens, pelos primeiros planos. Isso é bom, mas desordenado e de modo algum fundamentado sobre o estudo preciso do movimento. Um degrau acima, do drama psicológico, falta-lhe, apesar de tudo, fundamento. É banal. É a cópia da cópia.

NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra.

— Afastem-se deles!

— Não os olhem!

— Perigo de morte!

— Contagiosos!

NÓS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da "cinematografia" é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.

NÓS os concitamos a acelerar sua morte.

NÓS protestamos contra a miscigenação das artes a que muitos chamam de síntese. A mistura de cores ruins, ainda que escolhidas entre todos os tons do espectro, jamais dará o branco, mas sim o turvo.

Chegaremos à síntese na proporção em que o ponto mais alto de cada arte for alcançado. Nunca antes.

NÓS depuramos o cinema dos kinoks dos intrusos: música, literatura e teatro. Nós buscamos nosso ritmo próprio, sem roubá-lo de quem quer que seja, apenas encontrando-o, reconhecendo-o nos movimentos das coisas.

NÓS os conclamamos:

— a fugir — dos langorosos apelos das cantilenas românticas, do veneno do romance psicológico do abraço do teatro do amante e a virar as costas à música — a fugir — ganhemos o vasto campo, o espaço em quatro dimensões (3 + o tempo), à procura de um material, de um metro, de um ritmo inteiramente nosso.

O "psicológico" impede o homem de ser tão preciso quanto cronômetro, limita o seu anseio de se assemelhar à máquina. Não temos nenhuma razão para, na arte do movimento, dedicar o essencial de nossa atenção ao homem de hoje.

A incapacidade dos homens em saber se comportar nos coloca em posição vergonhosa diante das máquinas. Mas, o que se há de fazer, se os caprichos infalíveis da eletricidade nos tocam mais do que o atrito desordenado dos homens ativos e a lassidão corrupta dos homens passivos?

A alegria que nos proporcionam as danças das serras numa serraria é mais compreensível e mais próxima do que a que nos proporcionam os requebros desengonçados dos homens.

NÓS não queremos mais filmar temporariamente o homem, porque ele não sabe dirigir seus movimentos.

Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lerdo ao homem elétrico perfeito.

Ao revelar a alma da máquina, promovendo o amor do operário por seu instrumento, da camponesa por seu trator, do maquinista por sua locomotiva, nós introduzimos a alegria criadora em cada trabalho mecânico nós aproximamos os homens das máquinas nós educamos os novos homens.

O novo homem, libertado da canhestrice e da falta de jeito, dotado dos movimentos precisos e suaves da máquina, será o tema nobre dos filmes.

NÓS caminhamos de peito aberto para o reconhecimento do ritmo da máquina, para o deslumbramento diante do trabalho mecânico, para a percepção da beleza dos processos químicos. Nós cantamos os tremores de terra, compomos cine-poemas com as chamas e as centrais elétricas, admiramos os movimentos dos cometas e dos meteoros, e os gestos dos projetores que ofuscam as estrelas.

Todos aqueles que amam a sua arte buscam a essência profunda da sua própria técnica.

A cinematografia, que já tem os nervos emaranhados, necessita de um sistema rigoroso de movimentos precisos.

O metro, o ritmo, a natureza do movimento, sua disposição rígida com relação aos eixos das coordenadas da imagem e, talvez, os eixos mundiais das coordenadas (três dimensões + a quarta, o tempo) devem ser inventariados e estudados por todos os criadores do cinema.

Necessidade, precisão e velocidade: três imperativos que Nós exigimos do movimento digno de ser filmado e projetado.

Que seja um extrato geométrico do movimento por meio da alternância cativante das imagens, eis o que se pede da montagem.

O kinokismo é a arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior de cada objeto.

Os intervalos (passagens de um movimento para outro), e nunca os próprios movimentos, constituem o material (elementos da arte do movimento). São eles (os intervalos) que conduzem a ação para o desdobramento cinético. A organização do movimento é a organização de seus elementos, isto é, dos intervalos na frase. Distingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a queda do movimento (que se manifesta nesse ou naquele nível). Uma obra é feita de frases, tanto quanto estas últimas são feitas de intervalos de movimentos.

Depois de conceber um cine-poema ou um fragmento, o kinok deve saber anotá-lo com precisão, a fim de dar-lhe vida na tela, desde que haja condições favoráveis para tal.

Evidentemente, nem o roteiro mais perfeito será capaz de substituir essas notas, tanto quanto o libreto não substitui a pantomima e os comentários literários sobre Scriabin não dão nenhuma ideia da sua música.

Para poder representar um estudo dinâmico sobre uma folha de papel é preciso dominar os signos gráficos do movimento.

NÓS estamos em busca da cine-gama.

NÓS caímos e nos levantamos ao ritmo de movimentos, lentos e acelerados, correndo longe de nós, próximos a nós, acima, em círculo, em linha, em elipse, à direita e à esquerda, com os sinais de mais e de menos, os movimentos se curvam, se endireitam, se dividem, se fracionam, se multiplicam por si próprios, cruzando silenciosamente o espaço.

O cinema é também a arte de imaginar os movimentos dos objetos no espaço. Respondendo aos imperativos da ciência, é a encarnação do sonho do inventor, seja ele sábio, artista, engenheiro ou carpinteiro. Graças ao Kinokismo ele permite realizar o que é irrealizável na vida.

Desenhos em movimento. Esboços em movimento. Projetos de um futuro imediato. Teoria da relatividade projetada na tela.

NÓS saudamos a fantástica regularidade dos movimentos. Carregados nas asas das hipóteses, nosso olhar movido a hélice se perde no futuro.

NÓS acreditamos que está próximo o momento de lançar no espaço as torrentes de movimento retidas pela inoperância de nossa tática.

Viva a geometria dinâmica, as carreiras de pontos, de linhas, de superfícies, de volumes.

Viva a poesia da máquina acionada e em movimento, a dos guindastes, rodas e asas de aço, o grito de ferro dos movimentos, os ofuscantes trejeitos dos raios incandescentes.

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